burburinho

como vencer um debate sem precisar ter razo

livros por Gabriel Periss

A razo pode dar golpes sujos. Esta foi a percepo de Arthur Schopenhauer (1788-1860), que escreveu um pequeno tratado sobre a patifaria intelectual, denunciando o uso, ou o abuso que as pessoas, e sobretudo as que falam bem, fazem da inteligncia e das palavras. So 38 estratagemas que compem a Dialtica Erstica, publicada entre ns pela editora carioca Topbooks com o sugestivo ttulo Como vencer um debate sem precisar ter razo.

Embora incompleto, pois Schopenhauer ainda pretendia enriquec-lo com mais pginas antes da publicao, o tratado est suficientemente inteligvel e certeiro: em vez de procurar a verdade, o adversrio quer destruir o adversrio. A arte de discutir transforma-se na luta sem escrpulos para confundir, lanando mo de todo tipo de sofismas e desvios. Uma coisa querer persuadir algum de nossas convices. Outra, bem diferente, querer que o adversrio, no meio da polmica, perca a capacidade de responder e, por fim, se cale para sempre.

Um dos 38 estratagemas para confundir e calar o outro aquele que pretende provocar a raiva no interlocutor. Se eu conseguir deixar o meu adversrio zangado por algum motivo, devo aproveitar para deix-lo mais zangado ainda. Digamos que ele seja esprita e eu digo que os espritas precisam reencarnar dez vezes para conseguir entender um argumento. Se ele ficar irritado, devo continuar a irrit-lo, dizendo, por exemplo, que um esprita que recebe mensagens do alm no pode receber os direitos autorais do que escreveu... ou psicografou, pois suas idias so emprestadas etc. Se eu conseguir que o meu interlocutor se irrite, conseguirei evitar que pense e fale com clareza.

Outro estratagema alegar, ironicamente, que no entendemos o que o outro diz. A coisa pode soar assim: "Olha, meu amigo, a sua argumentao to profunda e eu sou to limitado que no consigo entender o seu pensamento." Dessa forma, estou insinuando que o outro que confuso, limitado e incapaz de explicar o que pensa.

Outro recurso, em sentido inverso ao anterior, dizer coisas incompreensveis com ar de profundidade para que o outro se sinta humilhado e, fingindo que compreende, acabe por aceitar tudo o que dissermos. Ento, se eu digo: "O paradigma da interao integra o jogo de inmeras foras concntricas que, sem privilegiar o efeito, anulam de certo modo a causa. Trata-se, na verdade, de sistemas autognicos no-ordinrios e no-cumulativos que, sem dvida, exigem uma nova percepo do fenmeno, voc concorda?" poucas pessoas tero coragem de contradizer-me.

Outra possibilidade, bastante difundida nos meios acadmicos e jornalsticos, utilizar os chamados "rtulos detestveis". Em vez de argumentar intelectualmente, procurando o que h de verdade e mentira no discurso alheio, eu posso simplesmente rotular o meu adversrio, tirando-lhe o direito de falar: os esquerdistas, ou direitistas, ou arrogantes, ou dogmticos, ou ateus, ou qualquer outro adjetivo-rtulo pressupe que o rotulado est proibido, numa sociedade to democrtica como a nossa, de defender suas odiosas idias. E geralmente o rotulado comea a querer explicar-se e definir-se, dizendo que ateu por isso e por aquilo mas que nem por isso um mau sujeito, ou que no dogmtico embora acredite em dogmas por essas e por outras etc. etc., o que apenas refora o rtulo e desvia a ateno do que realmente interessava.

Um dos sofismas preferidos pela mentalidade brasileira tentar destruir o adversrio afirmando que tudo o que ele disse est muito certo... na teoria, mas que na prtica no d nada certo. Desse modo, desautorizo tudo o que o outro disse porque pressuponho, baseado na observao da vida cotidiana, que, no final, tudo acaba mesmo em pizza, piada e carnaval. O que no deixa de ser, tambm, uma interessante teoria sobre ns mesmos.

Ainda outra possibilidade , no decorrer da discusso, fazer uma poro de perguntas, um verdadeiro tiroteio que impea o outro de pensar e responder: "Quanto linguagem complexa das cincias e sua traduo para linguagem do leigo, eu pergunto: ser que o mesmo vale para a microfsica? Para a biologia, por exemplo, ser que pode no falar em sntese dos cidos, mas usar algo mais leigo? Por que o filsofo sempre acusado de usar uma linguagem estranha ao leigo? Mas a linguagem do leigo mais simples? A condenao conferida pelo juiz a um ru efetivada por qual ao? No o fato de ele dizer "condenado"? Mas qual ao ele realizou a? Ele disse algo e, aps, bateu com um martelo na mesa. Mas em que momento ele condenou? Ao dizer? Ao bater com o martelo? Ou em ambos? E isto uma conveno ou no? Pode um juiz dizer 'voc est frito' e com isto querer dizer 'condenado'? E se em vez de bater com o martelo ele batesse palmas?" As perguntas podem ser infinitas, e infinitamente irrespondveis.

Depois de ler esse pequeno tratado de Schopenhauer, poderemos talvez perder a ingenuidade de acreditar em tudo, em quase tudo, do que nos dizem os grandes oradores, os grandes palestrantes, os grandes debatedores. Mas j estava na hora.


pensamentos despenteados para dias de vendaval
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