gonalves dias
o difcil encontrar pessoas que, mesmo hoje, saibam de cor alguns versos de Gonalves Dias, um dos maiores poetas brasileiros. Basta citar aqueles "Minha terra tem palmeiras / Onde canta o sabi" da Cano do Exlio, por exemplo, que , entre os seus poemas, o que mais fez sucesso desde que foi publicado no livro de estria (Primeiros Cantos, em 1847, quando tinha 24 anos), e cujos "Nossos bosques tm mais vida, / Nossa vida, mais amores" reaparecem ligeiramente modificados no Hino Nacional.
Gonalves Dias era filho de um portugus e de uma cafusa, de modo que seu nacionalismo no consistia apenas numa nota romntica, mas num dado gentico: branco, negro e ndio, mistura perfeita. Mistura, alis, que foi de algum modo por ele tematizada no poema Marab (palavra que em lngua tupi significa a mistura entre ndios e brancos), em que a ndia (filha de uma ndia com um europeu) se queixa da discriminao que sofre dos homens da tribo: "Eu vivo sozinha; ningum me procura! / Acaso feitura / No sou de Tup? / Se algum dentre os homens de mim no se esconde, / 'Tu s', me responde, / 'Tu s Marab!'"
Lembremos aqui a familiaridade de Gonalves Dias com a lngua tupi, a ponto de ter composto um Dicionrio Tupi, trabalho que no se deve encarar apenas como uma pesquisa filolgica e etnolgica. Acabou por ser tambm uma busca de inspirao potica, de que os poemas indianistas se beneficiaram. O famoso I-Juca-Pirama - que quer dizer "aquele que digno de ser morto" e, segundo o crtico Jos Guilherme Merquior, uma das realizaes mais perfeitas do verso em portugus - deixa transparecer o seu conhecimento cientfico, antropolgico, da mentalidade e da cultura indgenas. O poema conta uma histria. O guerreiro tupi, aprisionado pelos Timbiras, vai morrer num festim canibal. Preparam-no para ser morto, cortando-lhe o cabelo e pintando-lhe a pele. No entanto, o guerreiro chora, e pede que o deixem ajudar o pai cego que dele precisava. Seu choro denuncia fraqueza, e o chefe timbira se recusa a alimentar seu povo com a carne de um covarde. O rapaz, envergonhado, embora aliviado, volta para o pai que, tocando sua pele e seu crnio, descobre que o filho escapara da morte herica. Pai e filho retornam presena dos Timbiras, e aquele tenta convenc-los de que devem prosseguir no ritual. Nova recusa. E o pai ento lana uma terrvel maldio sobre o filho: "Que a teus passos a relva se torre; / Murchem prados, a flor desfalea, / E o regato que lmpido corre, / Mais te acenda o vesano furor; / Suas guas depressa se tornem, / Ao contacto dos lbios sedentos, / Lago impuro de vermes nojentos, / Donde fujas com asco e terror!" Mas no termina aqui o poema. No momento em que o velho tupi se dispe a ir embora sem o filho, este solta o grito de guerra e sozinho ataca os Timbiras, falecendo no combate suicida. O pai ento o aceita de novo, chorando orgulhoso sobre o cadver do filho. "Meninos, eu vi" a expresso com que Gonalves Dias conclui o poema, colocando-a na boca de um velho timbira que conta a histria para aqueles que no a presenciaram: "Valente e brioso, como ele, no vi!"
E temos toda a poesia amorosa de Gonalves Dias, que ainda hoje serve como referncia para os apaixonados, como naqueles versos ritmados de Ainda uma vez - Adeus: "Enfim te vejo! - enfim posso, / Curvado a teus ps, dizer-te / Que no cessei de querer-te, / Pesar de quanto sofri." A sua lrica tem muito de autobiogrfico, e so reconhecveis as mulheres em quem pensava quando escrevia este ou aquele poema. Mesmo casado, envolveu-se com vrias outras, e as que amou no passado continuavam sendo suas musas inspiradoras. O poema Minha vida e meus amores, por exemplo, se refere a trs dessas mulheres que no voltou a ver, mas que jamais esqueceu. Na realidade, incorrigvel romntico, Gonalves Dias sempre estava procura do amor perfeito: "O amor sincero e fundo e firme e eterno, / Como o amor em bonana meigo e doce", inalcanvel.
O antolgico Se se morre de amor! outra dessas realizaes poticas que ainda se podem ler, hoje, nas anotaes de uma adolescente mais conservadora. O poema, com uma epgrafe em alemo de Schiller que demonstra o grau de erudio do poeta maranhense, faz uma bela anlise do amor verdadeiro e do falso amor. O falso aquele amor nascido nas festas efmeras, nos encontros fugazes, e desse amor no se morre. O amor verdadeiro o do xtase mais puro, em que os amantes experimentam efeitos semelhantes aos da contemplao religiosa: "Sentir, sem que se veja, a quem se adora; / Compreender, sem lhe ouvir, seus pensamentos, / Segui-la, sem poder fitar seus olhos" - e desse amor se morre.
No final da vida, muito doente, Gonalves Dias, que estava na Europa a trabalho, temendo o inverno daquele ano de 1864 resolve regressar uma vez mais ao Brasil. Embarca em 10 de setembro e quase dois meses depois de uma longa viagem em alto-mar, o navio em que vinha naufraga na costa do Maranho. O poeta, j muito enfraquecido, estava deitado no seu camarote, e por isso foi a nica vtima fatal do acidente. Todos se salvaram, mas ningum teve a idia de ajud-lo a sair. Ironicamente (com pitadas de humor negro), a ltima estrofe da Cano do Exlio no se cumpriu: "No permita Deus que eu morra / Sem que eu volte para l".