burburinho

frodo, neo e plato

cinema por Nemo Nox

Duas das trilogias cinematogrficas de maior sucesso da virada do sculo, The Matrix e The Lord of the Rings, tm mais em comum que os efeitos visuais gerados por computador e as bilheterias recheadas de dlares. Pouca gente percebeu mas ambas histrias inspiram-se fortemente na filosofia grega clssica, mais especificamente em Plato, e mais especificamente ainda no livro A Repblica.

A trilogia The Matrix (The Matrix, 1999; The Matrix Reloaded, 2003; The Matrix Revolutions, 2003) conta a histria de Neo, o heri que descobre estar vivendo no no mundo que imaginava mas num universo virtual que no passa de um simulacro. Tudo que ele conhecia como realidade somente um reflexo criado artificialmente e com pouca semelhana ao que realmente est l fora. Em A Repblica, Plato apresentava, vinte e quatro sculos antes, uma idia bem parecida, a alegoria da caverna.

Plato sugere a seguinte situao: seres humanos vivendo numa caverna subterrnea desde a infncia, com as pernas e os pescoos acorrentados de forma que a nica coisa que podem ver so as sombras do exterior, projetadas pelo sol atravs da entrada da caverna. Eles conversam entre si, do nomes ao que vem, especulam sobre a natureza das coisas, teorizam sobre o que conhecem, mas como s tm acesso a uma pequena parte da realidade, somente s sombras e no aos verdadeiros objetos, sua compreenso do mundo profundamente limitada. Para Plato, ns somos como essas criaturas da caverna. Ele especula ainda sobre o que aconteceria se os caverncolas fossem libertados e tivessem que encarar o mundo exterior, a dor nos olhos causada pela luz excessiva, a perplexidade perante uma realidade desconhecida, a confuso ao descobrir que o que antes pensavam ser real era mera iluso.

The Matrix conta basicamente a mesma histria. No futuro, seres humanos vivem aprisionados num universo artificial criado por computadores, ignorantes da existncia de outra realidade, seguros que a iluso ao seu redor tudo que h para conhecer. Os poucos que conseguem escapar do simulacro, depois de um perodo de dolorosa adaptao, tornam-se uma espcie de heris platnicos, capazes de levar o conhecimento da realidade aos prisioneiros da caverna. Claro que os irmos Wachowski, criadores da trilogia, revestiram a histria com vrios outros elementos ( possvel encontrar facilmente no roteiro referncias literrias, filosficas e religiosas de vrias pocas, de Lewis Carroll a William Gibson, de Decartes a Baudrillard, do budismo ao gnosticismo), mas a alegoria da caverna de Plato sem dvida o ponto central da trama. Outros filmes abordaram o mesmo tema, reinterpretando alegoria da caverna, entre eles The Truman Show, Vanilla Sky e The Thirteenth Floor.

A trilogia Lord of the Rings (The Fellowship of the Ring, 2001; The Two Towers, 2002; The Return of the King, 2003) conta a histria de Frodo, o heri que recebe um anel mgico capaz de o tornar invisvel. A tentao de usar o anel para escapar de qualquer enrascada contrabalanada com a ameaa de ser contaminado com o feitio do artefato e unir-se definitivamente s foras do mal. Em A Repblica, Plato apresentava, vinte e quatro sculos antes, uma idia bem parecida, a fbula de Giges.

Segundo Plato, Giges era um pastor que encontrou um anel de ouro numa caverna (sim, parece que Plato gostava de cavernas). Logo percebeu que o artefato possua propriedades mgicas, tornando invisvel quem o usasse. Graas ao poder da invisibilidade, Giges teria podido ento de matar o rei, seduzir a rainha e ocupar o trono. Plato usa a histria como exemplo de que s nos comportamos com justia por estarmos presos s conseqncias dos nossos atos e que, com garantia de impunidade (que Giges obtm com o anel mgico), no teramos tais preocupaes.

A histria do anel que confere invisibilidade ao heri foi ganhando novas verses com o passar do tempo, as mais famosas sendo O Anel dos Nibelungos, pera de Richard Wagner, e O Senhor dos Anis, pico de J.R.R. Tolkien que foi adaptado para o cinema pelo diretor Peter Jackson. Mas se na histria de Plato existe o dilema moral e a possibilidade de escolha entre agir justa ou injustamente, para Tolkien e Jackson a questo est previamente resolvida, j que o prprio anel funciona como um agente inescapvel de corrupo, pervertendo qualquer um que o use. O mundo ficcional de Tolkien dominado pela luta do bem contra o mal, conceitos absolutos, e a escolha deixa de ser sobre o que fazer com o poder do artefato e passa a ser entre resistir ou no tentao do anel. Mas, mesmo com a simplificao da questo e com sua adaptao moral crist de Tolkien, a fbula proposta por Plato continua a figurar no centro da trama de The Lord of the Rings.

Se voc planeja criar a prxima trilogia cinematogrfica de sucesso e no sabe por onde comear, experimente ler A Repblica. Plato tinha idias interessantes.


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