burburinho

spektro

quadrinhos por Rafael Lima

A revista Spektro surgiu a partir de uma srie de experimentaes com o mercado conduzidas na editora Vecchi em 1976, com o objetivo de solificar sua linha de revistas em quadrinhos, iniciada trs anos antes. Sobressaiu, dentre as vrias tentativas editadas, a vendagem expressiva do especial de terror da revista Eureka apresentando as histrias do Dr. Spektro. Coube a Lotrio Vecchi, diretor geral, a idia de tornar a revista peridica, batizando-a sem o pronome de tratamento: Spektro. Otaclio Barros, o Ota, contratado da editora Ebal, foi feito editor e encarregado de buscar material para preench-la.

Ota passou a peneira nas distribuidoras de histrias estrangeiras, onde poderia comprar muitas pginas a preo baixo, trazendo o que tinha de Steve Ditko no meio de muito joio, alm de histrias nacionais da dcada de cinqenta desenhadas por Julio Shimamoto, Flavio Colin e Nico Rosso. Logo num dos primeiros nmeros, teve a idia de encaixar uma histria de Jayme Cortez, abrindo o terreno para o material nacional. O primeiro nmero da Spektro saiu em 1977.

Embora tivesse a idia de introduzir material nacional, Ota teria, primeiro, que convencer Lotrio da sua boa qualidade - Lotrio achava os estilos nacionais sujos e os autores pouco confiveis em termos de prazo e qualidade -, o que conseguiria, apoiado nos nmeros de vendas e nas cartas dos leitores, e segundo, montar do zero um esquema de produo que alimentasse as 160 pginas da revista.

Essa montagem teve incio com a volta ativa de Julio Shimamoto e Flavio Colin, retornando da publicidade, de onde tambm veio o desenhista Vilach; com o recrutamento de R.F. Luchetti e Hlio Soveral, roteristas de terror, e com o aproveitamento de desenhistas egressos de outros departamentos esvaziados da Vecchi. No entanto, a completa nacionalizao da revista ainda demoraria um punhado de edies, pois Lotrio comprara outro lote de enlatados por causa de sua desconfiana. Curiosamente, faziam parte deste conjunto artistas que depois ficariam famosos desenhando super-heris para a Marvel, como Mike Zeck e John Byrne, cuja estria no Brasil ocorreu naquela revista.

Em 1978 apareceram dois dos nomes de maior popularidade do ttulo: Watson Portela, que enviava as pginas de Recife, e Mano, que depois passou a assinar Elmano. Watson, que tambm faria para a Vecchi o western Chet, escrito por seu irmo Wilde Portela, veio inicialmente com lobisomens e cangaceiros, mas a liberdade editorial que recebeu o faria famoso com a srie chamada Paralela, meio fico-cientfica, meio fantasia, onde personagens de vrios mundos se cruzavam, na linha Garagem Hermtica de Moebius, cuja influncia era visvel inclusive no desenho limpo e elegante. J o Mano, que tinha diversos problemas no trao sujo, particularmente anatomia, atraiu o pblico por causa de sua temtica regionalista, envolvendo entidades de macumba e mitos do serto, como a Sinh Preta, o Filho de Sat e a Besta Fera, que eventualmente formariam o popular Trio Diablico.

Pelo lado dos roteiristas, apareceriam ainda Luscar, cartunista vindo do Pasquim, Julio Emilio Braz (que viraria um prolfico escritor de westerns de banca de jornal, anos depois), alm do que o prprio Ota rabiscava sob pseudnimos como Osvaldo Pestana ou Said Cimas (como editor, era proibido ser publicado por norma da casa). No time dos desenhistas, jogariam tambm Zenival, Ofeliano, vencedor num concurso interno de capas, que tinha por objetivo parar de usar os cromos importados, e Olendino Mendes, que mandava suas pginas prontas de Belo Horizonte, com um texto de rara poesia em meio a tanta barbaridade e delicado uso de hachuras.

Antes da chegada dos anos oitenta, a mquina azeitada do Ota j era capaz de produzir at quinhentas pginas mensais de material exclusivamente nacional. Nem tudo era de primeira linha; os carros-chefe da editora eram as revistas Spektro e Pesadelo, de 160 pginas cada uma, mas havia ainda Sobrenatural e Histrias do Alm, bem mais finas, que serviam como "aquecimento" para novos talentos e para escoar as piores histrias. Eram procedimentos editoriais comuns engavetar as primeiras histrias de estreantes, compradas apenas a ttulo de incentivo e treino, e repassar a maior parte dos roteiros para Shimamoto e Colin, que passaram a viver de quadrinhos, cujas histrias sempre seguravam a onda das revistas menores. Capaz de produzir at trs pginas por dia, Shimamoto chegou a parar de escrever seus prprios roteiros para poder passar mais tempo desenhando.

O sucesso comercial das revistas da Vecchi pode ser explicado graas identificao dos leitores com a temtica: ao invs de mmias ou vampiros, encontravam-se mulas sem cabea para os aterrorizar; necessrio lembrar que, nesta mesma poca, as tiragens do jornal Notcias Populares explodiam com os boatos do Beb Diabo e da Loira Fantasma. Chegou a ser publicada inclusive uma edio especial da Spektro s com histrias sobre macumba, mas havia contos situados em Santa Teresa, na Baixada Fluminense (ento a regio mais violenta do mundo), em canaviais setecentistas e at no Baixo Gvea (A Festa da Entropia, de Cesar Lobo), tudo devidamente temperado por uma dose de sexo, tal como no cinema nacional daquela poca. As revistas tambm se ancoravam em sries onde os personagens se repetiam, como Jonas Beltron, o detetive alcolatra, Cadernos de um Suicida, a saga do Padre Benedito ou os monstros do Hotel Nicanor, esta ltima na linha do terrir, ilustrada por Flavio Colin. Alm disso, estreitara-se o contato com o leitor atravs de longas sees de carta e editoriais, e enriquecia-se o contedo da revista com matrias sobre bruxaria (Aleister Crowley foi perfilado), contos de autores famosos traduzidos (Poe, Bierce, Conan Doyle, Lovecraft) e at uma seo de humor com cartuns.

Algumas curiosidades sobre os colaboradores: Cesar Lobo, quando comeou a produzir, era apenas um desenhista mediano. Aps um acidente de carro que limitou tremendamente sua viso, paradoxalmente melhorou muito o trao; tambm passou a escrever timos roteiros, que ele ditava, para poupar a vista. Na dcada de oitenta, Lobo se tornaria um brilhante ilustrador na tcnica do airbrush, e publicaria dois lbuns no mercado europeu, nunca editados no Brasil. Watson Portela j tinha quase trinta anos quando comeou a colaborar com a editora, o que explicava, em parte, sua qualidade superior; j viera ao Rio de Janeiro para tentar vender seus trabalhos, mas desistira por timidez e s mais tarde acabaria se mudando para a cidade por insistncia do Otaclio. Logo depois Watson mudaria-se de novo para Curitiba, por causa da Grafipar, que fomentara outro ncleo de quadrinhistas. Watson no sabia para onde conduzir o roteiro de Paralela, deixando vrias pontas soltas, e nunca concluindo a srie. Ofeliano de Almeida, mais do que grande desenhista, tornou-se ativista de quadrinhos e posteriormente editor, reaproveitando talentos que estreiaram na Vecchi (como ele). Otto Dumovich publicou poucas histrias em tom gtico, com desenho que destoava dos demais pela sofisticao, largaria os quadrinhos para trabalhar no cinema com storyboards (em Brincando nos Campos do Senhor) e fazer esculturas pblicas, como as de Braguinha e Pixinguinha, que ornam a cidade carioca. Em suma, a editora Vecchi foi um celeiro de talentos.

O fim foi abrupto. O endividamento da empresa graas compra de uma grfica na Avenida Brasil comeou a comprometer os pagamentos e, conseqentemente, os prazos, o que gerou migrao de artistas para outras praas, como a j citada Grafipar. Lotrio Vecchi desentenderia-se com suas irms, o que o levou a afastar-se da editora, acabando com o apoio poltico do Ota, que saiu numa daquelas listas de demisso tpicas de momentos de crise. Todo o sistema de produo foi desmantelado. As histrias j prontas foram agrupadas e lanadas numa srie de edies especiais, que venderam bem, confirmando que o veio havia sido encontrado. Mas nos anos seguintes a inflao dispararia e j era tarde demais para recompor o time.

[As principais informaes deste artigo foram retiradas das entrevistas de Otaclio a Ofeliano presentes nas edies 2 e 3 do fanzine Notcias em Quadrinhos, de 1984]


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